Ia para mais de uma hora que, com os olhos fixos no livro, continuava, com um ar alienado, sem ler uma única linha. Uma decisão precisava de ser tomada e a opção certa teimava em se fazer definir. Nunca pensou chegar à situação em que se encontrava agora, sem pelo menos ter coragem para fazer uma opção...para fazer o que estava correcto. Por um lado, vivia uma relação que tinha tanto de carinhosa, como de ilegítima. Quando estavam juntos, sentia que era certo, que pareciam feitos um para o outro, apesar dele ser casado com outra mulher e insistir em não largar a família. Para ela, isso não era um problema, desde que tinha compreendido que podia viver o seu amor, sem complicações. Vivia o dia a dia, num contexto, estranhamente, calmo e confortável para quem não fazia parte de uma vida oficial, mas quem sabe, podia muito bem ser a parte mais importante da vida dele. O problema estava na falta de tempo, o tempo que ele dividia entre as suas duas vidas e que cada vez mais escasseava. Quantas eram as vezes que ela esperava, noite dentro, pelas suas escapadelas.
Mas agora, tinha, por um capricho do destino, conhecido um homem mais empolgante, mais envolvente...e disponível. Foi durante uma louca ida aos saldos, quando carregada de sacos, no momento em que todos pareciam que se iam desfazer, que ele veio em seu auxílio e se ofereceu para ajudar. Como um perfeito cavalheiro, carregou-lhe os sacos e convidou-a a beber um chá, Conversaram e perderam-se, durante horas, no olhar e nas histórias um do outro.
O que lhe pareceu, inicialmente, uma conversa absolutamente normal, de repente, foi como um acordar, de novo para a vida. Havia, novamente, aquela faísca, na troca de olhares, que há tanto havia ficado adormecida, na sua actual relação. Ele mostrou-se interessado, trocaram os números e combinaram voltar a se encontrar. Estaria ela disposta a embarcar, no que lhe parecia uma aventura intensa, que provavelmente iria consumi-la? Agora, não podia ver umas meias de descanso, que logo a faziam lembrar a ala do calçado ortopédico, onde se tinham conhecido.
E o que, até então, ela sempre pensou ser o seu grande amor, continuava casado, ia para mais de 60 anos. Não tinha esperanças em que ele fosse só seu, mas queria mais. E nada garantia que o seu caso durasse muito mais tempo. Se por um lado continuava a gostar muito dele, tinha que ser realista. Dava agora por si a pensar no outro e em tudo o que ele lhe prometia e que parecia poder proporcionar, com os seus 68 anos. Tinha que tomar uma decisão, afinal o tempo também já não era seu amigo. Apesar de ninguém lhe dar mais de 70 anos, os sinais de alerta estavam lá – arteriosclerose, artroses, cataratas e gota.
Suspirou bem fundo, ajeitou a dentadura e voltou a atenção, de novo, para o livro de puzzles. Ah! - afinal está aqui a palavra que faltava.
ERA UMA VEZ - the twilight stories
11 years ago
2 comments:
muito bom!
gosto especialmente quando no fim de um texto tão romântico e filosófico, lhe dás uma imagem cómica e pitoresca...
NO surprises.. A Rute no seu melhor!!!
Post a Comment