Thursday, December 15, 2005

Lisboa 15 Dezembro 2005, 19.20h


Mais uma noite fria que chega com o final de dia de trabalho, que nos deixa sem acção enquanto a longa espera pelo autocarro persiste.
Enquanto me refaço do frenesim do dia e começo a sentir a calma invadir, que chega com a noite, alguém quebra o meu estado de espírito ausente, que tanto prezo e que funciona diariamente, como o meu plano separador.

“Desculpe...é aqui o 82?”

A contínua ânsia por informações e insistentes dúvidas sobre a paragem começaram a deixar-me sem paz de espírito.

“...não passa aqui o 34 e o 107?”

Não sei, respondi eu, até há pouco a paragem era do outro lado, não sei que mais autocarros passam aqui.

“...desculpe, minha senhora, mas isso é falta de informação!”

Para quem me conhece sabe bem qual foi a expressão quando respondi:
“Pois e não é só minha!”

Mas parece que o meu tom sarcástico não foi suficiente para desmobilizar aquele monólogo.
Falava dos autocarros, de ir trabalhar até às 8 da manhã, pedia desculpa por ter sido mal educado ao ter feito uma pergunta sem ter dito boa noite, por estar a incomodar...mas sem, por isso, deixar de se calar.

E eu esperava por um momento de silêncio ...ansiava a vinda do autocarro que tardava em aparecer.

Finalmente, a tão aguardada chegada que iria pôr termo àquela intervenção regada com algum alcool e uso continuado deste.
Mas como o dia já estava a correr tão bem, cheio de precalços e acidentes que só me faziam rir, não podia esperar um desfecho tão simples e discreto.

Para meu azar, o sítio onde me sentei tinha um lugar vago em frente e pode-se já adivinhar quem resolveu ocupar o lugar.

Olhei pela janela e distanciei-me daquela realidade.
A tentação foi demasiada:
“Parece tão preocupada...” comentou quase genuinamente

Respondi a seco que ao fim de um dia de trabalho é normal estar desgastada.

Após um momento de silêncio, foi mais forte que ele – e trabalha em quê, se me permite perguntar.

Eu ponderei e resolvi que não estava com paciência para inventar uma personagem e respondi: em aquitectura

Os olhos esbulharam-se em resposta. A sério?! ...é arquitecta?
Acenei que sim, sem dar muita importância.
Eia...fazer ...( articulando gestos atrapalhados com as mãos, que indiciavam a figura de um arranha-céus) ...tem que se lhe diga...isso deve ser muito complicado.
Respondi que é um trabalho que envolve outros técnicos, que é um trabalho conjunto, tentando não lhe dar mais motivo para tanto fascínio.
De repente aquele ar de quem não diz coisa com coisa, transformou-se em interesse extremo.
Mas é estagiária...
Não
Mais esbugalhado ficou, mostrando os seu olhos suspeitamente raiados de vermelho.

Por entre divagações sobre o gorro que trazia na cabeça e o facto de conhecer muitos arquitectos e engenheiros, contou, já com uma lucidez impressionante, como era desenhador de barcos e como teve que recorrer a trabalho de segurança.

Ao fim de ponderar um pouco, confessou-se curiosamente espantado, pelo facto de no meio de tanta gente, naquela altura ter logo recorrido para informações, alguém de uma área que lhe não lhe era totalmente estranha.. que, como dizia um amigo (meu), um destes dias, o mundo é mesmo uma casca de noz.

Como se qualquer efeito anestesiante tivesse dissipado com aquela revelação, confessou ainda que qualquer dia teria de arrumar carros, para ter o que comer. Gosta da profissão de desenhador, mas o trabalho teima em aparecer. E com uma consciência impressionante, não se tentou vitimizar. Comparando a sua escassez de trabalho com a quase certa escassez na área da arquitectura. “Vocês também não devem estar melhor... “

Lá fora, ficava para trás uma gigantesca árvore de natal, esbanjadamente iluminada – ícone máximo de aparências – a maior árvore de natal da europa, à sombra da qual, sob as arcadas dormem tantos indigentes, que não fazem parte do record.

Antes de sair, agradeceu aquela conversa, apresentou-se formalmente e desejou felicidades. Retribuí o gesto e mergulhei de novo no meu mundo, sem deixar de pensar que não ia conseguir deixar de contar.

Continuo a achar que as mais insignificantes experiências do dia a dia, se não as deixarmos passar ao lado, podem ajudar a descortinar uma noção diferente e mais aprofundada da realidade.
...que é o que espero andar a fazer.

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