Saturday, September 30, 2006

Happy Brokenday


Hoje faz, precisamente, um mês que tive a maior queda da minha vida. Ao fim de três dias de choque, de duas semanas de absoluto tédio, apenas interrompido pelas visitas dos meus queridos amigos, e mais duas semanas de trabalho em casa e terapia de escrita e desenho, que me mantêm sã, continuo a sentir-me uma prisioneira da minha própria perna. Perna essa, que apesar de querer fugir do próprio gesso, que cada vez mais, me cai pela perna abaixo (estou a ver que ainda vou conseguir descalçá-lo que nem uma bota), apresenta-se agora como um verdadeiro depósito de peles, que coçam e saem embrulhados no algodão que envolve a perna, como se fosse cotão – sem dúvida, um paraíso para ácaros.
E cá vou indo, exercitanto mais o dedo que a perna, saltitando pela casa e treinando a minha fuga, enquanto olho pela janela, e vejo o verão virar outono.

Thursday, September 28, 2006

Geriatric Lust

Ia para mais de uma hora que, com os olhos fixos no livro, continuava, com um ar alienado, sem ler uma única linha. Uma decisão precisava de ser tomada e a opção certa teimava em se fazer definir. Nunca pensou chegar à situação em que se encontrava agora, sem pelo menos ter coragem para fazer uma opção...para fazer o que estava correcto. Por um lado, vivia uma relação que tinha tanto de carinhosa, como de ilegítima. Quando estavam juntos, sentia que era certo, que pareciam feitos um para o outro, apesar dele ser casado com outra mulher e insistir em não largar a família. Para ela, isso não era um problema, desde que tinha compreendido que podia viver o seu amor, sem complicações. Vivia o dia a dia, num contexto, estranhamente, calmo e confortável para quem não fazia parte de uma vida oficial, mas quem sabe, podia muito bem ser a parte mais importante da vida dele. O problema estava na falta de tempo, o tempo que ele dividia entre as suas duas vidas e que cada vez mais escasseava. Quantas eram as vezes que ela esperava, noite dentro, pelas suas escapadelas.
Mas agora, tinha, por um capricho do destino, conhecido um homem mais empolgante, mais envolvente...e disponível. Foi durante uma louca ida aos saldos, quando carregada de sacos, no momento em que todos pareciam que se iam desfazer, que ele veio em seu auxílio e se ofereceu para ajudar. Como um perfeito cavalheiro, carregou-lhe os sacos e convidou-a a beber um chá, Conversaram e perderam-se, durante horas, no olhar e nas histórias um do outro.
O que lhe pareceu, inicialmente, uma conversa absolutamente normal, de repente, foi como um acordar, de novo para a vida. Havia, novamente, aquela faísca, na troca de olhares, que há tanto havia ficado adormecida, na sua actual relação. Ele mostrou-se interessado, trocaram os números e combinaram voltar a se encontrar. Estaria ela disposta a embarcar, no que lhe parecia uma aventura intensa, que provavelmente iria consumi-la? Agora, não podia ver umas meias de descanso, que logo a faziam lembrar a ala do calçado ortopédico, onde se tinham conhecido.
E o que, até então, ela sempre pensou ser o seu grande amor, continuava casado, ia para mais de 60 anos. Não tinha esperanças em que ele fosse só seu, mas queria mais. E nada garantia que o seu caso durasse muito mais tempo. Se por um lado continuava a gostar muito dele, tinha que ser realista. Dava agora por si a pensar no outro e em tudo o que ele lhe prometia e que parecia poder proporcionar, com os seus 68 anos. Tinha que tomar uma decisão, afinal o tempo também já não era seu amigo. Apesar de ninguém lhe dar mais de 70 anos, os sinais de alerta estavam lá – arteriosclerose, artroses, cataratas e gota.
Suspirou bem fundo, ajeitou a dentadura e voltou a atenção, de novo, para o livro de puzzles. Ah! - afinal está aqui a palavra que faltava.

Monday, September 25, 2006

o início


Ela hesita ao se aproximar da porta de madeira envelhecida. O coração acelera, até pulsar ao ritmo da música que vem do interior. Inspira fundo e entra, como se dominasse o espaço. Com um nó no estômago, simula a segurança que lhe falha e descobre-o entre a multidão. Aproxima-se com passos leves, mas decididos. Os olhos dele iluminam-se ao vislumbrá-la entre os demais e sorri. Ela pára junto dele. Percorre, com o olhar, cada detalhe da sua face, como se quisesse imortalizar aquele momento perfeito, na sua mente. Trocam olhares cúmplices e a insegurança dissipa-se no momento. Ela aproxima-se e segreda-lhe ao ouvido. Demorei muito? Só a minha vida toda. O sorriso envergonhado solta-se num estado de euforia interior, quase infantil, que lhe enche a alma.

é impossível não gostar deles

com as suas manias, complicações

e inseguranças.

Thursday, September 21, 2006

Curiosidades

Em tempo de guerra, abrem-se trincheiras, constroem-se bunkers e dispõe-se a artilharia. Neste campo de concentração, que se tornou a vista da minha janela e a banda sonora dos meus dias, surge, uma noite, um fenómeno curioso.


Bem à porta de uma tal família Cruz, alguém se lembrou de brincar com as pedras, por colocar, do lancil. Alheio à ironia, que são as coincidências, em fazer uma montagem com as mesmas, em formato de cruz.

Monday, September 18, 2006

Hoje tiraram-me os agrafos

A sensação libertadora, do arranque, algo semelhante às sensações provocadas pela depilação com máquina, em que o puxão tem algo de arrepiante, quase bitter sweet, num ponto concentrado e profundo. Pelo menos foi como melhor descrevi, o facto de eu estar com um sorriso de orelha a orelha, à enfermeira preocupada com o trabalho de desmanche do outrora caderno de argolas com folhas e carne viva e capa em pele humana. E em cada orifício, de onde se retira um agrafo, se forma uma gota escura de sangue espesso. Segundo a opinião da mesma e do próprio médico, que muito me espantou ter aparecido, está bonito sim senhor, o meu pezinho. Parece que vamos no bom caminho e que o gesso deixa de fazer parte de mim, lá para 9 de Outubro.

Saturday, September 16, 2006

Hoje, estava a comer uma pizza e lembrei-me de ti

não que eu ache que saibas a atum, queijo ou ananás...

ou que sinta por ti uma atracção irresistível, apesar de fazeres mal ao colestrol.

mas porque me lembrei das noites de stress, em que nem à volta de uma pizza nos conseguíamos acalmar.

...ficou a faltar a mousse hagen daz

My left foot

o fe(e)tish continua

Friday, September 15, 2006

SALAMANCA...afinal sou eu

Ás vezes apeteceu-me...

Deixando para trás as coisas tristes

Novo anúncio Pepsodent - made in Ciudad Rodrigo
É preciso comprar pilhas - Tou "Varta"!
O balanço da viagem...

DOWNSIDE


Acordo uma vez mais, ansiando pela manhã. As noites tornaram-se demasiado longas e arrastadas, longe da rotina a que me habituei. O tédio tornou-se uma constante, à medida que memorizo os contornos das rachas no tecto. As posições condicionadas pela elevação da perna, trazem, não só o estorvo de uma bota de gesso, mas também as dores constantes dos músculos que agora compensam o desiquilíbrio. Se há uma semana dizia que a única dor que sentia era na alma, hoje não é bem assim que descrevo. Recordo as palhaçadas nas fotos tiradas há 1 mês atrás, em que agora descrevo como os tempos em que era feliz e andava. Resta-me aguardar... aguardar que a dor passe, aguardar que conquiste mais mobilidade, aguardar que volte a sair, aguardar por melhores dias, enquanto vejo as mudanças ocorrerem sem nada poder fazer para as travar.
12 Setembro 06

A FUGA DOS INVÁLIDOS


5 de setembro, 21h. Acabei de dar de fuga do quarto a bordo da minha cadeira de rodas. Já percebi qual a hora em que não se vê ninguém no corredor, nem uma testemunha. Chego, com um micro-pico de adrenalina ao átrio, à máquinas dos cafés, apenas para perceber que não aceita notas...a única coisa que tenho. Estaciono junto a um pilar e desato a escrever. Se hoje não fôr a última noite aqui, tenho que cravar trocos amanhã.
22h, hora do fecho das luzes. Por azar, nada funciona no quarto – nem campainha, nem controlo individual de luzes. Enfio-me de novo na cadeira, que mais faz lembrar um tanque humano, com a perna lesionada esticada e erecta sobre o apoio, e fujo de novo do quarto. Vou de novo para o Hall, falar com o mundo lá fora. Pela primeira vez, em uma semana, longe da temperatura controlada do quarto, apercebo-me de quanto quentes e pegajosas estão as noites. Em frente a uma janela aberta, vejo as luzes dos anúncios e sinto a aragem morna e calma que me envolve.

5 Setembro 06

ELES NÃO RESISTEM A UMA BOTINHA BRANCA


Já me tinha apercebido, como o título de arquitecto abre muitos sorrisos e estados de vénia, mas quase sempre, no caso masculino, em alturas que requerem charme e sedução, para iniciar uma conversa, obter uma mesa num restaurante, para massajar o ego. Não estou a afirmar que só os homens o façam, ou que só os arquitectos os façam, ou que todos o façam. Mas como já tive oportunidade de testar, existem pessoas que simplesmente não consideram a mulher como um ser digno de ouvir as suas zurrices – azar! Ora o que eu ainda não sabia e como tenho vindo a constatar com alguma surpresa é que ser arquitecta também dá um bom impulso nas artes da sedução. Mesmo quando ela surge de surpresa. Tenho vindo a constatar que no meio clínico, a profissional arquitecto goza de algum estatuto, diria até, de um trunfo sedutor, sem ter que recorrer a amostras de conhecimento sobre a profissão, como o facto de haver uma legislação que rege as intervenções ou qual o nome específico de elementos da construção :P. Muito tenho aprendido nestes 5 dias de férias forçadas e acho particularmente engraçadas aquelas que vêem sem aviso, tipo, lerem na ficha qual a ocupação e iniciarem a conversa fiada por aí. Meninas arquitectas e desesperadas, se o vosso sonho é casarem com um médico, enfermeiro, auxiliar ou terapeuta, partam a perna!
5 Setembro 06

RUTE (NA) CRUZ


Setembro é o mês das virgens – e não bastando ter sido a 1ª queda séria, a 1ª grande fractura, a 1ª intervenção de bombeiros, a 1ª viagem de ambuância, a 1ª entrada nas urgências, o 1º internamento, a 1ª operação, a 1ª vez que me caíu tudo ao chão quando constatei que estava impossibilitada de corrigir a minha vida segundo planos traçados por mim. Não podia estar agora, no mesmo contexto virginal, deixar de pensar na figura de cristo na cruz, enquanto fico aqui deitada a fixar o tecto, com um braço para cada lado, à medida que me espetam alternadamente , um e o outro braço, enquanto tentam achar uma veia que não rebente com a introdução do catéter. À medida que as minhas chagas aumentam, em formato de pensos e chupões, penso na ironia do meu nome, Rute (na) Cruz. E não posso deixar de rir com mais uma situação pseudo-trágica. What doens’t kill you, makes you stronger…espero. Cuidado, vou ser difícil de aturar depois desta!

4 setembro 2006

Gracie

À medida que vou vivendo novas e degradantes experiências, nesta aventura que de bom grado dispensava viver, espero que dela perdure apenas as lembrança do apoio da família - completamente desnorteada, a simpatia e cuidado do pessoal auxiliar e de enfermagem assim como a sorte de ter encontrado um vizinho de desgraça, que melhor não podia ter imaginado – para além de me distrair, orientar, animar e mimar com pequenos gestos, foi cruxial para eu manter a cabeça no sítio. Muito obrigado. Que as tuas dores desapareçam rápido e que recuperes a 100% a mobilidade. Já tenho saudades do respirar nocturno que rompia com o silêncio do quarto!
E aos meus amigos, que vocês sabem bem quem são, muito obrigado e muitos beijos coxos!
3 Setembro 06

UMA CHAPA E TRÊS PARAFUSOS

Paredes sujas, reboco cheio de humidade, plásticos industriais, instalações bolorentas fazem o cenário grotesco de uma festa de presença obrigatória, sem convite nem pré-aviso. A espera longa e enervante no abandono dos corredores em mutação. A luz pisca e tremelica, penso que descobri a musa inspiradora dos melhores argumentos de terror hospitalar. Aos poucos, o mau torna-se menos mau, traço, sem grandes certezas, um plano mental. Em vão, porém, com o resultado de um raio-x, tudo se desmorona numa frase. Luxação, fractura, que tal uma tri? Um azar nunca vem só e uma operação também não. Temporariamente no sítio, aguardo exasperando por mais de hora e meia por uma transferência que tarda em se concretizar.A antecipação de uma segunda etapa, num rol de etapas sem fim, nesta viagem sem aviso, nem inscrição e sem final agendado. Só sei, tudo o que não vou poder fazer. Nada sei sobre aquilo que tenho ou que posso fazer e neste momento, tudo parece impossível. Vejo as luzes da cidade passarem ao lado, insensíveis à confusão que vivo. Novo corredor, nova maca, nova espera. Vejo-os passar para falar sobre mim. Parecem alienados ao facto de não me poder mover, de não poder sair daquele corredor. Vejo-os voltar com ar assustado, transtornados, mais nervosos que nunca. O veredíto é o internamento, vais ser operada. Vão-te tirar os pertences. Fico um segundo a pensar e ligo, à pressa, para avisar a notícia. De repente vejo-me de novo na sala de raio-x e aguardam que desligue o telemóvel. Pedem-me para tirar tudo naquele corredor. Ponho toda a roupa, os acessórios que já nem me lembro que uso e tudo o que faz parte de mim naquele saco e espero pelo dia que mo voltem a entregar. Sou levada para uma sala escura, injectam-me um cateter e mais um extra para relaxar “vamos tentar dormir”. Fico de olhos abertos a fixar o tecto, tentando acordar de um pesadelo que numa fracção de segundo, me tirou uma das coisas que mais prezo. O mais insignificante gesto necessita de auxílio de terceiros. Durmo 2 horas e vejo que tudo não passa da mais cruel realidade.
31Agosto06